ALIMENTAÇÃO
E CULTURA DA PAZ
“Enquanto existirem abatedouros, existirão campos de guerra” (Léon Tolstoi)
Como encontrar a paz se a violência é praticada em cada
refeição que se faz? A busca pela paz passa também pela
alimentação. A não violência deve começar pelo prato.
O consumo de carne e
de outros produtos de origem animal é uma prática que, se num
passado longínquo, foi supostamente necessária para a sobrevivência
e desenvolvimento humano, nos dias de hoje já se mostra não só
dispensável, mas também nociva para a saúde, devastadora para o
planeta e cada vez mais perversa para com os animais. Já é
plenamente provado ser possível uma nutrição humana completa e
saudável, mesmo desde a infância, sem qualquer necessidade de
carnes ou outros produtos de origem animal.
Sob
o ponto de vista de uma cultura da paz, o fundamento para que se
adote o vegetarianismo é o princípio da não violência (ahimsa).
Ensina Muller (2006,
p. 40-41):
Foi
Gandhi quem deu ao Ocidente o termo não-violência, como tradução
para o termo sânscrito ahimsa,
que aparece com frequência na literatura hindu, jainista e budista.
Ahimsa
é um composto do prefixo negativo a
e
do substantivo himsa,
que significa o desejo de ferir ou cometer uma violência contra uma
criatura viva. Ahimsa
é, portanto, o reconhecer, domar, dominar e transmutar o desejo por
violência encontrado nos seres humanos, que os leva a querer
eliminar, excluir, livrar-se de ou machucar seus semelhantes. […]
Ao tentar definir a não-violência, Gandhi oferece de início esta
proposição: “A não violência perfeita é a total ausência de
animosidade em relação a tudo quanto vive.” Só então ele
prossegue dizendo: “Em sua forma ativa, a não-violência se
expressa como cordialidade em relação a tudo que vive.”
A terceirização da
matança e da exploração dos animais garante à maioria das pessoas
onívoras tranquilidade suficiente para continuarem suas refeições
“em paz”. “O bicho já está morto mesmo”, dizem alguns, sem
se conscientizarem de que é o consumidor final quem financia,
justifica e incentiva a matança e a exploração animal. Sim, o
bicho já está morto, mas quem o consome é também responsável,
ainda que indiretamente, por sua morte. O consumidor é, assim,
coautor dessa matança e exploração, vez que o que alguém faz por
meio de outro, ele próprio faz. E trata-se de atitude moralmente
mais culpável, pois atribui a alguém o trabalho que não se tem
coragem de fazer. Se fossem obrigadas a matar pessoalmente a carne
que comem, a maioria das pessoas certamente não conseguiria
continuar a utilizar cadáveres em suas refeições. A indústria da
carne lhes facilita o trabalho e oculta-lhes a violência brutal a
que são submetidos esses nossos irmãos terráqueos.
Essa cultura da
violência trata os animais não como seres vivos sencientes, mas sim
como coisas, objetos, escravos dos quais se pode usar e abusar. Eles
são tratados como mercadoria em uma lucrativa indústria de animais
de estimação. São torturados e mortos em uma lucrativa indústria
de alimentos. São utilizados como matéria-prima em uma lucrativa
indústria de roupas e acessórios. São utilizados como cobaias em
uma lucrativa indústria de remédios e cosméticos. E, por fim, como
se não bastasse tudo isso, são mau tratados e mortos por puro
esporte e diversão em uma lucrativa indústria de entretenimento
(rodeios, touradas, zoológicos, pescarias, etc.). Toda essa
violência absurda continua sendo praticada em nossa cultura não por
necessidade, mas simplesmente por hábito, tradição, mercado e
lucro.
A alimentação do
ser humano no mundo contemporâneo deixou de ter como propósito a
nutrição. Hoje seu propósito é o lucro. A maior parte da
indústria alimentícia não está interessada em nutrir as pessoas
de maneira adequada, ética e saudável. O que move seus interesses é
outro. Trata-se aqui de uma indústria sanguinária e nociva que não
admite mudanças nas regras do jogo e, para tanto, faz questão de
continuar condicionando as pessoas numa cultura da carne desde a
infância. E o círculo vicioso se perpetua, numa tradição
sinistra: as pessoas, habituadas por essa cultura a comerem carne
desde a infância, continuam financiando e justificando a indústria
da morte.
É preciso, pois,
quebrar a tradição. Nas palavras de Muller (2007, p. 15),
“descobriremos que, para romper com a cultura da violência, será
necessário rompermos, definitivamente, com nossa própria cultura. E
não se pode negar a dificuldade em recusar a tradição que nos foi
legada como uma herança sagrada”.
A construção de
uma Cultura da Paz inclui, pois, a substituição dessa cultura da
carne por uma cultura vegetariana e, de preferência, vegana ou
estrita (com exclusão de qualquer produto de origem animal). Isso
porque a exploração dos animais atenta contra a paz interior,
contra a paz social e contra a paz ambiental.
Com relação à paz
interior, de acordo com a ciência, o consumo de carne está
associado a diversos problemas de saúde (estudos apontam para a
melhoria de várias funções do corpo ao se adotar uma alimentação
sem carne). Gorduras saturadas, colesterol, hormônios, antibióticos,
nitratos e agrotóxicos (que se acumulam em maior quantidade no
tecido adiposo dos animais do que nos vegetais) transformam,
frequentemente, a carne consumida diariamente num risco à saúde. A
filosofia, por sua vez, aborda as implicações éticas da exploração
dos animais, já que estes são seres sencientes e sujeitos de uma
vida. E a religião, ao menos segundo a ótica de algumas linhas
espiritualistas, revela comprometimentos espirituais dessa
exploração. E não só o consumo de carne, mas também dos
derivados da exploração animal (como laticínios e ovos), pode
trazer influências sobre a saúde, implicações éticas e
comprometimentos espirituais.
Com relação à paz
social, ironicamente, a criação de gado para a alimentação humana
é uma das maiores responsáveis pela fome no mundo, acarretando
diversos problemas sociais. A carne é o alimento mais antieconômico
e elitista do planeta. Além disso, a ganância humana também é
responsável pelo extermínio contínuo de populações inteiras de
animais. Agredindo sociedades de outras espécies, o ser humano
agride a sua própria sociedade.
Com relação à paz
ambiental, a criação de gado e de outros animais para a alimentação
é uma das atividades humanas mais poluidoras do meio ambiente, sendo
responsável pela contaminação de rios, gasto excessivo de recursos
naturais (como a água doce do planeta), destruição de florestas
inteiras e destruição da biodiversidade do planeta.
Precisamos repensar
e modificar nossos hábitos alimentares, nossas tradições, nossos
estilos e modas e, acima de tudo, nosso modo de pensar. Deveríamos
amar os animais como o experiente ama o inocente, como o forte ama o
vulnerável. É nossa obrigação dar-lhes uma vida feliz e longa.
“Não matarás”
é uma lei divina que poucos têm coragem de negar. Muitos a têm em
conta como lema para trabalhos e campanhas em defesa da vida e contra
a violência. Mas poucos a seguem. Bastaria um olhar mais crítico
para a refeição de cada dia para que as pessoas se apercebessem de
que a valorização da vida não senta à mesa junto delas. As
pessoas violam o “não matar” diariamente, seja diretamente, seja
através de procuração para que outros o façam por elas.
É contraditório,
ainda, que tentemos ensinar as crianças a respeitarem a natureza, a
amarem e protegerem animais em extinção, ou o cão, o gato, a
baleia e o golfinho, mas exemplifiquemos justamente o contrário em
nossa mesa de refeição, elegendo outras espécies de animais
igualmente sensíveis e inteligentes para alvo de nossa exploração
e extermínio.
O ensinamento maior
presente em todas as grandes religiões e filosofias é “amar ao
próximo como a si mesmo”. Gandhi (apud ROHDEN, 2008, p. 151)
complementa: “Tudo o que vive é teu próximo” . Devemos, pois,
amar e proteger os animais como nossos irmãos. E amar e proteger a
natureza como uma mãe, que nos oferece o maravilhoso mundo dos
alimentos vegetais para nos nutrir.
Neste ponto, muitos
questionam por que excluir os animais da nossa alimentação e não
excluir os vegetais, já que também são “vivos”. É simples:
podemos viver sem nos alimentar de animais, mas não podemos viver
sem nos alimentar dos vegetais (salvo raríssimos casos de pessoas
que supostamente conseguem “viver de luz”, segundo alguns
relatos). O que fazemos com os vegetais, ao nos alimentarmos deles, é
ainda uma necessidade evolutiva de nossa parte. O que fazemos com os
animais, ao contrário, não é mais um uso condicionado à nossa
necessidade, mas sim um abuso, vez que, como dissemos no início, já
é plenamente provado ser possível uma nutrição humana completa e
saudável, mesmo desde a infância, sem qualquer necessidade de
carnes ou outros produtos de origem animal.
Além disso, existe
grande diferença entre se alimentar de animais e se alimentar de
vegetais. De acordo com Singer (2010, p. 14), o limite da senciência
é o que deve ser levado em conta nessa distinção entre animais e
vegetais. Os animais são, em geral, seres sencientes (sobretudo os
vertebrados), diferentemente dos vegetais (que não são capazes de
sofrer). Como nós, os animais sentem dor, medo, prazer, alegria e
estresse, além de terem memória e até saudade. Segundo a
classificação científica, pertencemos ao mesmo reino (reino
animal), indicando que há algo de irmandade entre nós, ou seja, que
há uma mesma origem evolutiva. Para Regan (2006, p. 66-67),
diferentemente dos vegetais, os animais são também sujeitos de uma
vida (como nós, humanos), ou seja, são criaturas psicológicas
complexas, conscientes do mundo e se importam com o que lhes
acontece. Já os vegetais não têm mais do que vida orgânica.
Há os que alegam,
inclusive com base em algumas pesquisas, que as plantas também têm
sensibilidade, reagindo de alguma forma a sons, toques e luzes.
Alguns afirmam que há pesquisas que chegam até mesmo ao ponto de
concluírem que as plantas parecem ser sencientes (TOMPKINS; BIRD,
1976, p. 17). Entretanto, tais pesquisas (que não seguem
necessariamente controles científicos) são mais bem aceitas por
linhas ocultistas e crenças metafísicas do que propriamente pela
ciência oficial, que nunca encontrou evidência suficientemente
forte para concluir no mesmo sentido. Tudo leva a crer que as
referidas pesquisas evidenciam apenas o óbvio: que as plantas
recebem impressões físicas da ação sobre a matéria, apresentando
reações mecânicas, mas nada que leve a uma conclusão
incontestável de se tratar de percepções ou sensações (como dor,
medo, tristeza ou alegria), já que as plantas não possuem algo como
um sistema nervoso. Que o meio provoca reações físicas nas plantas
é absolutamente natural, mas é forçado, precipitado e infundado,
até o momento, o raciocínio que interpreta essas reações físicas
como idênticas ou semelhantes às reações de um sistema nervoso.
Ainda assim, apenas a título de imaginação, suponha-se que seja
verdadeira a hipótese de que os vegetais sintam algo. Ora, isso
seria mais um argumento a favor do vegetarianismo. Se tivermos por
princípio que devemos tentar provocar o mínimo possível de danos e
mortes aos outros seres para nos alimentar, então a criação de
animais para produzir alimentos continua sendo a pior opção, já
que é preciso uma quantidade infinitamente maior de desmatamentos e
de plantações só para criar e alimentar os animais que irão virar
carne. A melhor forma de minimizar a destruição da vida vegetal
seria, portanto, utilizar diretamente os vegetais para consumo humano
e abandonar a produção de itens de origem animal.
O reconhecimento de
que os animais possuem senciência e complexidade psicológica, ao
contrário dos vegetais, que possuem apenas vida orgânica, não
significa necessariamente que se esteja defendendo uma postura de
desprezo pelo reino vegetal, como se não houvesse nada a se levar em
conta no trato com as plantas. Elas são importantes para o
equilíbrio ecológico, para a alimentação de animais humanos e
não-humanos, para a preservação da vida e da diversidade
biológica. É óbvio, pois, que a necessidade de uso que temos com
relação aos vegetais, não deve se transformar em abuso, em
destruição desnecessária e gratuita.
Fica, assim,
revelada a medida pela qual deve ser interpretada a frase de Gandhi:
“tudo o que vive é teu próximo”. A expressão “vida” aí
deve ser interpretada mais num sentido estrito, correspondendo a
“vida senciente” (sujeitos de uma vida), não no sentido lato,
que significa qualquer “vida orgânica”, abrangendo inclusive
aquelas “vidas sem sujeito”. Trata-se, portanto, de vida em
sentido relativo, não absoluto.
Sobre o uso de
vegetais na alimentação, abstendo-se apenas da exploração e morte
animal, ensina Gandhi (1999, p. 302):
O
ditado de que a vida vive da vida contém uma profunda significação.
O homem não pode viver um momento sequer sem cometer himsa
[violência], consciente ou inconscientemente. O próprio fato de
estar vivo - comer, beber, movimentar-se - necessariamente envolve
algum himsa,
destruição de vida, ainda que minúsculo. Portanto, quem fez um
voto de ahimsa
[não-violência] ainda será fiel a seu credo se a mola propulsora
de todas as suas ações for a compaixão, se evita tanto quanto pode
a destruição da menor das criaturas, se tenta salvá-la, e assim
busca incessantemente ficar livre da agitação mortal do himsa.
Ele crescerá em seu autocontrole e compaixão, mas nunca conseguirá
ficar inteiramente livre do himsa
externo.
Muller (2007, p.
108) também ensina:
Aquele
que optou pela ação não-violenta tem consciência da insensatez de
pretender viver uma ação não-violenta ab-soluta
(isto é, segundo a etimologia latina da palavra, desligada da
realidade), e que deve aprender incessantemente a viver uma
não-violência re-lativa
(isto é, sempre segundo a etimologia da palavra, re-ligada à
realidade) [...]. Se a não-violência não tem a aspiração de ser
absoluta, ela tem a intenção de ser radical (do latim radix,
que significa raiz);
em outras palavras, quer arrancar a violência pela raiz, quer
ex-tirpá-la (do latim stirps,
que também significa raiz),
ou seja, quer esforçar-se por fazê-la perecer, destruindo suas
raízes culturais, ideológicas, sociais e políticas.
Arremata Packer
(2010, p. 22-23):
O
reino vegetal tem o seu grau de sutilização e sensibilização,
porém bem inferior ao reino animal. Nessa premissa sutil se sustenta
o vegetarianismo, nos mostrando que quando um alimento do reino
vegetal é ingerido, provocamos muito pouco sofrimento à Consciência
que ali se mantém em estado de latência, diferente na forma animal
que a Consciência já está operando num estado de despertar. […]
Um estilo de vida vegetariano nos dá o suporte interno para fazermos
escolhas que geram cada vez menos sofrimento para os animais, para o
planeta e para nossa própria evolução. […] Comecemos por aquilo
que nos é possível preferindo uma alimento mais simples em que a
natureza não se desgastou para que o obtivéssemos.
Assim, ainda que não
possamos nos abster do uso de vegetais em nossa alimentação,
estaremos sendo fiéis ao princípio da não violência se já
conseguirmos nos abster de carne e, tanto quanto possível, de outros
produtos de origem animal (laticínios, ovos, mel, certos tipos de
corantes, etc.).
É preciso, pois,
promover uma arte culinária que contribua para a construção de uma
Cultura da Paz, sem que deixe de ser saudável, nutritiva e saborosa,
auxiliando as pessoas na tarefa cotidiana de se alimentar de maneira
ética, se não eliminando, ao menos reduzindo ao máximo a violência
na alimentação.
De início, pode
parecer difícil um processo de reeducação alimentar para os que
não estão acostumados com novos sabores e sentem falta dos
“prazeres da carne”. Mas a persistência no ideal certamente
levará a pessoa a descobrir o prazer em se alimentar de forma ética
e saudável, reeducando o paladar. “O verdadeiro gosto da comida
não está na língua, mas na mente”, ensina Gandhi (1999, p. 64).
E acrescenta: “O gosto adquire-se, não nasce conosco” (2007, p.
68).
Clésio
Tapety
www.culturadapaz.com
REFERÊNCIAS:
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Mohandas K. Autobiografia:
minha vida e minhas experiências com a verdade.
Tradução de Humberto Mariotti et al. São Paulo: Palas Athena,
1999.
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Jean-Marie. Não-violência
na educação.
Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2006.
MULLER,
Jean-Marie. O princípio
da não-violência.
Tradução de Inês Polegato. São Paulo: Palas Athena, 2007.
PACKER,
Maria Laura Garcia. Viver
vegetariano: sutilizando a existência: 108 receitas veganas
inspiradas com sabedoria, arte e beleza.
Blumenau: Nova Letra, 2010.
REGAN,
Tom. Jaulas vazias:
encarando o desafio dos direitos animais. Tradução de Regina Rheda.
Porto Alegre: Lugano, 2006.
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HUBERTO. Mahatma
Gandhi: O Apóstolo da Não-Violência.
São Paulo: Martin Claret, 2008.
SINGER,
Peter. Libertação
Animal. Tradução de
Marly Winckler e Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010.
SLYWITCH,
Eric. Alimentação sem
carne: guia prático: o primeiro livro brasileiro que ensina como
montar sua dieta vegetariana.
São Paulo: Alaúde Editorial, 2010.
SLYWITCH,
Eric. Virei vegetariano e agora? São Paulo: Alaúde Editorial, 2010.
TOMPKINS,
Peter; BIRD, Chistopher. A
vida secreta das plantas.
Tradução de Leonardo Fróes. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.
377 p.
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