30 de out. de 2012

ALIMENTAÇÃO E CULTURA DA PAZ


Enquanto existirem abatedouros, existirão campos de guerra” (Léon Tolstoi)


Como encontrar a paz se a violência é praticada em cada refeição que se faz? A busca pela paz passa também pela alimentação. A não violência deve começar pelo prato.
O consumo de carne e de outros produtos de origem animal é uma prática que, se num passado longínquo, foi supostamente necessária para a sobrevivência e desenvolvimento humano, nos dias de hoje já se mostra não só dispensável, mas também nociva para a saúde, devastadora para o planeta e cada vez mais perversa para com os animais. Já é plenamente provado ser possível uma nutrição humana completa e saudável, mesmo desde a infância, sem qualquer necessidade de carnes ou outros produtos de origem animal.
Sob o ponto de vista de uma cultura da paz, o fundamento para que se adote o vegetarianismo é o princípio da não violência (ahimsa).
Ensina Muller (2006, p. 40-41):
Foi Gandhi quem deu ao Ocidente o termo não-violência, como tradução para o termo sânscrito ahimsa, que aparece com frequência na literatura hindu, jainista e budista. Ahimsa é um composto do prefixo negativo a e do substantivo himsa, que significa o desejo de ferir ou cometer uma violência contra uma criatura viva. Ahimsa é, portanto, o reconhecer, domar, dominar e transmutar o desejo por violência encontrado nos seres humanos, que os leva a querer eliminar, excluir, livrar-se de ou machucar seus semelhantes. […] Ao tentar definir a não-violência, Gandhi oferece de início esta proposição: “A não violência perfeita é a total ausência de animosidade em relação a tudo quanto vive.” Só então ele prossegue dizendo: “Em sua forma ativa, a não-violência se expressa como cordialidade em relação a tudo que vive.”
A terceirização da matança e da exploração dos animais garante à maioria das pessoas onívoras tranquilidade suficiente para continuarem suas refeições “em paz”. “O bicho já está morto mesmo”, dizem alguns, sem se conscientizarem de que é o consumidor final quem financia, justifica e incentiva a matança e a exploração animal. Sim, o bicho já está morto, mas quem o consome é também responsável, ainda que indiretamente, por sua morte. O consumidor é, assim, coautor dessa matança e exploração, vez que o que alguém faz por meio de outro, ele próprio faz. E trata-se de atitude moralmente mais culpável, pois atribui a alguém o trabalho que não se tem coragem de fazer. Se fossem obrigadas a matar pessoalmente a carne que comem, a maioria das pessoas certamente não conseguiria continuar a utilizar cadáveres em suas refeições. A indústria da carne lhes facilita o trabalho e oculta-lhes a violência brutal a que são submetidos esses nossos irmãos terráqueos.
Essa cultura da violência trata os animais não como seres vivos sencientes, mas sim como coisas, objetos, escravos dos quais se pode usar e abusar. Eles são tratados como mercadoria em uma lucrativa indústria de animais de estimação. São torturados e mortos em uma lucrativa indústria de alimentos. São utilizados como matéria-prima em uma lucrativa indústria de roupas e acessórios. São utilizados como cobaias em uma lucrativa indústria de remédios e cosméticos. E, por fim, como se não bastasse tudo isso, são mau tratados e mortos por puro esporte e diversão em uma lucrativa indústria de entretenimento (rodeios, touradas, zoológicos, pescarias, etc.). Toda essa violência absurda continua sendo praticada em nossa cultura não por necessidade, mas simplesmente por hábito, tradição, mercado e lucro.
A alimentação do ser humano no mundo contemporâneo deixou de ter como propósito a nutrição. Hoje seu propósito é o lucro. A maior parte da indústria alimentícia não está interessada em nutrir as pessoas de maneira adequada, ética e saudável. O que move seus interesses é outro. Trata-se aqui de uma indústria sanguinária e nociva que não admite mudanças nas regras do jogo e, para tanto, faz questão de continuar condicionando as pessoas numa cultura da carne desde a infância. E o círculo vicioso se perpetua, numa tradição sinistra: as pessoas, habituadas por essa cultura a comerem carne desde a infância, continuam financiando e justificando a indústria da morte.
É preciso, pois, quebrar a tradição. Nas palavras de Muller (2007, p. 15), “descobriremos que, para romper com a cultura da violência, será necessário rompermos, definitivamente, com nossa própria cultura. E não se pode negar a dificuldade em recusar a tradição que nos foi legada como uma herança sagrada”.
A construção de uma Cultura da Paz inclui, pois, a substituição dessa cultura da carne por uma cultura vegetariana e, de preferência, vegana ou estrita (com exclusão de qualquer produto de origem animal). Isso porque a exploração dos animais atenta contra a paz interior, contra a paz social e contra a paz ambiental.
Com relação à paz interior, de acordo com a ciência, o consumo de carne está associado a diversos problemas de saúde (estudos apontam para a melhoria de várias funções do corpo ao se adotar uma alimentação sem carne). Gorduras saturadas, colesterol, hormônios, antibióticos, nitratos e agrotóxicos (que se acumulam em maior quantidade no tecido adiposo dos animais do que nos vegetais) transformam, frequentemente, a carne consumida diariamente num risco à saúde. A filosofia, por sua vez, aborda as implicações éticas da exploração dos animais, já que estes são seres sencientes e sujeitos de uma vida. E a religião, ao menos segundo a ótica de algumas linhas espiritualistas, revela comprometimentos espirituais dessa exploração. E não só o consumo de carne, mas também dos derivados da exploração animal (como laticínios e ovos), pode trazer influências sobre a saúde, implicações éticas e comprometimentos espirituais.
Com relação à paz social, ironicamente, a criação de gado para a alimentação humana é uma das maiores responsáveis pela fome no mundo, acarretando diversos problemas sociais. A carne é o alimento mais antieconômico e elitista do planeta. Além disso, a ganância humana também é responsável pelo extermínio contínuo de populações inteiras de animais. Agredindo sociedades de outras espécies, o ser humano agride a sua própria sociedade.
Com relação à paz ambiental, a criação de gado e de outros animais para a alimentação é uma das atividades humanas mais poluidoras do meio ambiente, sendo responsável pela contaminação de rios, gasto excessivo de recursos naturais (como a água doce do planeta), destruição de florestas inteiras e destruição da biodiversidade do planeta.
Precisamos repensar e modificar nossos hábitos alimentares, nossas tradições, nossos estilos e modas e, acima de tudo, nosso modo de pensar. Deveríamos amar os animais como o experiente ama o inocente, como o forte ama o vulnerável. É nossa obrigação dar-lhes uma vida feliz e longa.
Não matarás” é uma lei divina que poucos têm coragem de negar. Muitos a têm em conta como lema para trabalhos e campanhas em defesa da vida e contra a violência. Mas poucos a seguem. Bastaria um olhar mais crítico para a refeição de cada dia para que as pessoas se apercebessem de que a valorização da vida não senta à mesa junto delas. As pessoas violam o “não matar” diariamente, seja diretamente, seja através de procuração para que outros o façam por elas.
É contraditório, ainda, que tentemos ensinar as crianças a respeitarem a natureza, a amarem e protegerem animais em extinção, ou o cão, o gato, a baleia e o golfinho, mas exemplifiquemos justamente o contrário em nossa mesa de refeição, elegendo outras espécies de animais igualmente sensíveis e inteligentes para alvo de nossa exploração e extermínio.
O ensinamento maior presente em todas as grandes religiões e filosofias é “amar ao próximo como a si mesmo”. Gandhi (apud ROHDEN, 2008, p. 151) complementa: “Tudo o que vive é teu próximo” . Devemos, pois, amar e proteger os animais como nossos irmãos. E amar e proteger a natureza como uma mãe, que nos oferece o maravilhoso mundo dos alimentos vegetais para nos nutrir.
Neste ponto, muitos questionam por que excluir os animais da nossa alimentação e não excluir os vegetais, já que também são “vivos”. É simples: podemos viver sem nos alimentar de animais, mas não podemos viver sem nos alimentar dos vegetais (salvo raríssimos casos de pessoas que supostamente conseguem “viver de luz”, segundo alguns relatos). O que fazemos com os vegetais, ao nos alimentarmos deles, é ainda uma necessidade evolutiva de nossa parte. O que fazemos com os animais, ao contrário, não é mais um uso condicionado à nossa necessidade, mas sim um abuso, vez que, como dissemos no início, já é plenamente provado ser possível uma nutrição humana completa e saudável, mesmo desde a infância, sem qualquer necessidade de carnes ou outros produtos de origem animal.
Além disso, existe grande diferença entre se alimentar de animais e se alimentar de vegetais. De acordo com Singer (2010, p. 14), o limite da senciência é o que deve ser levado em conta nessa distinção entre animais e vegetais. Os animais são, em geral, seres sencientes (sobretudo os vertebrados), diferentemente dos vegetais (que não são capazes de sofrer). Como nós, os animais sentem dor, medo, prazer, alegria e estresse, além de terem memória e até saudade. Segundo a classificação científica, pertencemos ao mesmo reino (reino animal), indicando que há algo de irmandade entre nós, ou seja, que há uma mesma origem evolutiva. Para Regan (2006, p. 66-67), diferentemente dos vegetais, os animais são também sujeitos de uma vida (como nós, humanos), ou seja, são criaturas psicológicas complexas, conscientes do mundo e se importam com o que lhes acontece. Já os vegetais não têm mais do que vida orgânica.
Há os que alegam, inclusive com base em algumas pesquisas, que as plantas também têm sensibilidade, reagindo de alguma forma a sons, toques e luzes. Alguns afirmam que há pesquisas que chegam até mesmo ao ponto de concluírem que as plantas parecem ser sencientes (TOMPKINS; BIRD, 1976, p. 17). Entretanto, tais pesquisas (que não seguem necessariamente controles científicos) são mais bem aceitas por linhas ocultistas e crenças metafísicas do que propriamente pela ciência oficial, que nunca encontrou evidência suficientemente forte para concluir no mesmo sentido. Tudo leva a crer que as referidas pesquisas evidenciam apenas o óbvio: que as plantas recebem impressões físicas da ação sobre a matéria, apresentando reações mecânicas, mas nada que leve a uma conclusão incontestável de se tratar de percepções ou sensações (como dor, medo, tristeza ou alegria), já que as plantas não possuem algo como um sistema nervoso. Que o meio provoca reações físicas nas plantas é absolutamente natural, mas é forçado, precipitado e infundado, até o momento, o raciocínio que interpreta essas reações físicas como idênticas ou semelhantes às reações de um sistema nervoso. Ainda assim, apenas a título de imaginação, suponha-se que seja verdadeira a hipótese de que os vegetais sintam algo. Ora, isso seria mais um argumento a favor do vegetarianismo. Se tivermos por princípio que devemos tentar provocar o mínimo possível de danos e mortes aos outros seres para nos alimentar, então a criação de animais para produzir alimentos continua sendo a pior opção, já que é preciso uma quantidade infinitamente maior de desmatamentos e de plantações só para criar e alimentar os animais que irão virar carne. A melhor forma de minimizar a destruição da vida vegetal seria, portanto, utilizar diretamente os vegetais para consumo humano e abandonar a produção de itens de origem animal.
O reconhecimento de que os animais possuem senciência e complexidade psicológica, ao contrário dos vegetais, que possuem apenas vida orgânica, não significa necessariamente que se esteja defendendo uma postura de desprezo pelo reino vegetal, como se não houvesse nada a se levar em conta no trato com as plantas. Elas são importantes para o equilíbrio ecológico, para a alimentação de animais humanos e não-humanos, para a preservação da vida e da diversidade biológica. É óbvio, pois, que a necessidade de uso que temos com relação aos vegetais, não deve se transformar em abuso, em destruição desnecessária e gratuita.
Fica, assim, revelada a medida pela qual deve ser interpretada a frase de Gandhi: “tudo o que vive é teu próximo”. A expressão “vida” aí deve ser interpretada mais num sentido estrito, correspondendo a “vida senciente” (sujeitos de uma vida), não no sentido lato, que significa qualquer “vida orgânica”, abrangendo inclusive aquelas “vidas sem sujeito”. Trata-se, portanto, de vida em sentido relativo, não absoluto.
Sobre o uso de vegetais na alimentação, abstendo-se apenas da exploração e morte animal, ensina Gandhi (1999, p. 302):
O ditado de que a vida vive da vida contém uma profunda significação. O homem não pode viver um momento sequer sem cometer himsa [violência], consciente ou inconscientemente. O próprio fato de estar vivo - comer, beber, movimentar-se - necessariamente envolve algum himsa, destruição de vida, ainda que minúsculo. Portanto, quem fez um voto de ahimsa [não-violência] ainda será fiel a seu credo se a mola propulsora de todas as suas ações for a compaixão, se evita tanto quanto pode a destruição da menor das criaturas, se tenta salvá-la, e assim busca incessantemente ficar livre da agitação mortal do himsa. Ele crescerá em seu autocontrole e compaixão, mas nunca conseguirá ficar inteiramente livre do himsa externo.
Muller (2007, p. 108) também ensina:
Aquele que optou pela ação não-violenta tem consciência da insensatez de pretender viver uma ação não-violenta ab-soluta (isto é, segundo a etimologia latina da palavra, desligada da realidade), e que deve aprender incessantemente a viver uma não-violência re-lativa (isto é, sempre segundo a etimologia da palavra, re-ligada à realidade) [...]. Se a não-violência não tem a aspiração de ser absoluta, ela tem a intenção de ser radical (do latim radix, que significa raiz); em outras palavras, quer arrancar a violência pela raiz, quer ex-tirpá-la (do latim stirps, que também significa raiz), ou seja, quer esforçar-se por fazê-la perecer, destruindo suas raízes culturais, ideológicas, sociais e políticas.
Arremata Packer (2010, p. 22-23):
O reino vegetal tem o seu grau de sutilização e sensibilização, porém bem inferior ao reino animal. Nessa premissa sutil se sustenta o vegetarianismo, nos mostrando que quando um alimento do reino vegetal é ingerido, provocamos muito pouco sofrimento à Consciência que ali se mantém em estado de latência, diferente na forma animal que a Consciência já está operando num estado de despertar. […] Um estilo de vida vegetariano nos dá o suporte interno para fazermos escolhas que geram cada vez menos sofrimento para os animais, para o planeta e para nossa própria evolução. […] Comecemos por aquilo que nos é possível preferindo uma alimento mais simples em que a natureza não se desgastou para que o obtivéssemos.
Assim, ainda que não possamos nos abster do uso de vegetais em nossa alimentação, estaremos sendo fiéis ao princípio da não violência se já conseguirmos nos abster de carne e, tanto quanto possível, de outros produtos de origem animal (laticínios, ovos, mel, certos tipos de corantes, etc.).
É preciso, pois, promover uma arte culinária que contribua para a construção de uma Cultura da Paz, sem que deixe de ser saudável, nutritiva e saborosa, auxiliando as pessoas na tarefa cotidiana de se alimentar de maneira ética, se não eliminando, ao menos reduzindo ao máximo a violência na alimentação.
De início, pode parecer difícil um processo de reeducação alimentar para os que não estão acostumados com novos sabores e sentem falta dos “prazeres da carne”. Mas a persistência no ideal certamente levará a pessoa a descobrir o prazer em se alimentar de forma ética e saudável, reeducando o paladar. “O verdadeiro gosto da comida não está na língua, mas na mente”, ensina Gandhi (1999, p. 64). E acrescenta: “O gosto adquire-se, não nasce conosco” (2007, p. 68).

Clésio Tapety
www.culturadapaz.com

REFERÊNCIAS:

GANDHI, Mohandas K. Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade. Tradução de Humberto Mariotti et al. São Paulo: Palas Athena, 1999.
GANDHI, Mohandas K. [et al.]. Tudo o que vive é teu próximo. 2. ed. Limeira: Editora do Conhecimento, 2007.
MULLER, Jean-Marie. Não-violência na educação. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2006.
MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência. Tradução de Inês Polegato. São Paulo: Palas Athena, 2007.
PACKER, Maria Laura Garcia. Viver vegetariano: sutilizando a existência: 108 receitas veganas inspiradas com sabedoria, arte e beleza. Blumenau: Nova Letra, 2010.
REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Tradução de Regina Rheda. Porto Alegre: Lugano, 2006.
ROHDEN, HUBERTO. Mahatma Gandhi: O Apóstolo da Não-Violência. São Paulo: Martin Claret, 2008.
SINGER, Peter. Libertação Animal. Tradução de Marly Winckler e Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
SLYWITCH, Eric. Alimentação sem carne: guia prático: o primeiro livro brasileiro que ensina como montar sua dieta vegetariana. São Paulo: Alaúde Editorial, 2010.
SLYWITCH, Eric. Virei vegetariano e agora? São Paulo: Alaúde Editorial, 2010.
TOMPKINS, Peter; BIRD, Chistopher. A vida secreta das plantas. Tradução de Leonardo Fróes. São Paulo: Círculo do Livro, 1976. 377 p.

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